No banho, enquanto esfregava as pálpebras, mantendo os olhos fechados, a ideia lhe ocorreu. Para não deixá-la escapar, desligou a torneira, agarrou-se à toalha, esfregou o corpo como se tomada por uma urgência, em meio a movimentos bruscos, e saiu do banheiro, espalhando pegadas de água pela casa. Ele estava assistindo a um programa de TV qualquer. Ela disse: “Tive uma ideia. Acho que consigo voltar a escrever”. Ele levantou os olhos, interessado, embora também um pouco sonolento. Depois de ouvi-la, suspirou, deixando escapar um princípio de risada: “Às vezes me pergunto se devia ter te apresentado essa série. Acho que, por algum motivo, ela ressalta seu lado obsessivo”.
Ela abaixou a cabeça, disfarce que não o impediu de identificar a expressão de timidez que lhe contagiava o rosto. “Não foi uma boa ideia, então?”, perguntou ela. “Não foi o que eu disse”, ele respondeu, “eu costumo enxergar sempre algo de interessante nas suas ideias. O que estou dizendo é que você está um tanto quanto... como é que eu posso dizer? Presa a uma série dos anos 90. Não acho que traçar paralelos entre uma série a que poucas pessoas ainda assistem hoje e um livro contemporâneo, e que inclusive acaba de ganhar um importante prêmio literário, vá atiçar os ânimos de muita gente...”.
“Ainda assim, eu incentivo a escrita. Vá em frente. Se ninguém mais julgar intrigante, ao menos nós dois podemos conversar sobre o texto. Ao menos as nossas conversas você sempre terá”.
Ela se dirige ao cômodo onde fica o computador, ainda com a toalha molhada envelopando o corpo. Abre um documento de Word e dá início ao seu relato de leitura do romance “A mais recôndita memória dos homens”, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Ela decide se reportar ao momento inicial do livro, ainda na página 44, em que o personagem narrador, Diégane, e um de seus amigos, Stanislas, conversam sobre uma obra literária a que Diégane atribui grande relevância, e ao redor da qual a narrativa se desenvolve. Stanislas pergunta ao narrador “do que falava o livro” em questão. “Não esperava essa pergunta, que aliás detesto”, pondera o narrador, em seguida de que prossegue: “Refleti por um momento e, como tinha que dizer alguma coisa, dei uma resposta grandiloquente, com frases repletas de maiúsculas [...]”.
O que agora interessa a ela é a resposta do amigo, Stanislas, que aconselha Diégane, dizendo: “[...] jamais tente dizer do que fala um grande livro. Ou, se você o fizer, eis a única resposta possível: não fala de nada. Um grande livro sempre fala de nada e, no entanto, tudo está lá. Nunca mais caia na armadilha de querer dizer do que fala um livro que você acha grande. Essa é a armadilha que a opinião pública prega. As pessoas querem que um livro fale necessariamente de alguma coisa. A verdade, Diégane, é que só um livro medíocre, ruim ou banal, fala de alguma coisa. Um grande livro não tem assunto e não fala de nada, procura apenas dizer ou descobrir alguma coisa, mas esse apenas já é tudo, assim como essa coisa também já é tudo”.
Quando se depara com o trecho pela primeira vez, ela tem a impressão de entender a sua beleza. Um grande livro muito provavelmente não nos mune de respostas, não nos faz sentir que estamos preenchidos, preparados a vencer a vida em qualquer que seja o seu aspecto desafiador. Um grande livro talvez não seja nunca um livro pretensioso. Ele não se entrega a soluções fáceis, mas sim, em vez disso, dá espaço às perguntas difíceis. Ela entende. O trecho a impactou, tamanha a verdade a que ele concede voz.
E, no entanto... “eis a única resposta possível: não fala de nada”, frase seguida da afirmação de que “[...] fala de nada e, no entanto, tudo está lá”, depois de que se encontra, ainda, a ideia de que uma grande obra “[...] não tem assunto e não fala de nada”. Tais conceitos a atormentam, uma vez que parecem fazer referência a alguma outra ideia com que ela já tivera contato prévio. De onde os conhecia? Talvez não a eles, propriamente, mas a algo que se mantivesse próximo, que se assemelhasse... que transmitisse, de modo semelhante ao que faz o personagem Stanislas, a sugestão de que, a partir do nada, pode-se chegar ao tudo. A sugestão de que o nada pode ser um ponto de partida promissor.
Lembrou-se! — recordação que, por sua vez, fez com seu único interlocutor dissesse acreditar que ela estava obcecada. Pode ser que haja, de fato, uma espécie de veracidade nessa constatação que, a princípio, talvez tivesse parecido até um pouco passiva-agressiva. Ela admite, enfim: pensa, com certa frequência, na série em questão. Faz referência a ela nos mais diversos contextos, mediante comentários a que as pessoas, em geral, reagem de modo seco, um pouco sem graça, replicando que não assistiram à série ou que, embora já tivessem ouvido falar, consideravam-na antiga e um tanto quanto fora de moda...
Ainda assim, agora ela acredita, agora ela se deixa animar pela convicção de que sua comparação é justificável! “Já estava lá”, ela diz a si mesma, em voz alta, “a ideia de Sarr já fora antes cogitada, em outro contexto. Em outros termos, correto, mas já estava lá e o paralelo é perfeitamente visível!”.
Ela revê, a fins de comprovação, o episódio de “The Pitch”, o quadragésimo terceiro episódio da clássica sitcom dos anos oitenta, Seinfeld. O episódio é o terceiro da quarta temporada da série, tendo ganhado exibição em 16 de setembro de 1992. Nesse episódio, a produtora televisiva, NBC, demonstra interesse na ideia de que Jerry Seinfeld, um dos personagens e produtores da série, tenha a sua própria série de TV, então Jerry e George, outro dos personagens, tentam pensar em uma proposta para a NBC. Sobre o que seria a série televisa? Qual seria o enredo dela?
Em determinado momento do episódio, George, personagem que, inicialmente, se sentia nervoso a ponto de cogitar sequer participar da reunião com os empresários, toma a palavra e diz: “Acho que posso resumir a proposta para vocês em uma palavra: nada!”. “Nada?”, pergunta o diretor da NBC, sem entender. George reafirma seu pensamento ao responder: “Nada!”. “O que isso significa?”, questiona o diretor. “O programa de TV não será sobre... nada”. Em seguida, desenvolve: “Nada acontece no programa. Será como na vida. Você come, você vai às compras, você lê...”. Os executivos demonstram incredulidade frente à real possibilidade de apelo que um programa teria caso seus personagens apenas lessem enquanto a câmera os filma, de modo que tentam uma abordagem diferente: “Falem-me sobre o enredo. Qual será o enredo?”. George se apressa em responder: “Não! Sem enredo”.
Em outro momento de “A mais recôndita memória dos homens”, Diégane, o narrador, menciona uma pergunta muito comum quando o assunto é um livro, e que relembra a estrutura da conversa entre Jerry e George e os executivos de TV: “É sobre o quê?”. A respeito desse questionamento, Diégane expõe uma crença: “(essa pergunta encarna o Mal na literatura)”.
É possível que a ideia de Sarr, ao trazer à tona, em dois de seus personagens, uma crítica à necessidade de caixinhas fechadas de compreensão, diante das quais nos sentimos seguros uma vez que categorizamos intenções, personalidades e acontecimentos, não esteja assim tão distante do empreendimento com que Seinfeld se comprometeu: o de que seus episódios não fossem sobre nada, o que, por fim, apresentava a eles a possibilidade de que a temática da série contemplasse toda e qualquer coisa.
Novamente, acredita ela, está-se diante da ambiguidade que nada mais é que um componente onipresente de cada uma de nossas vidas. A complexidade de um personagem espelha a nossa própria, uma vez que, se uma câmera nos seguisse o dia todo, ou se um narrador se comprometesse a registrar, em palavras, cada um de nossos gestos, é bem provável que não pudéssemos nos definir como inteiramente bons, justos, honestos e corretos. Além disso, definimos a nós mesmos, estabelecemos um entendimento prévio de modos eficazes ou adequados de agir, ponderamos sobre a nossa existência, a partir de acontecimentos que, a princípio, para olhos externos, podem parecer eventualidades banais. Um livro, ou mesmo uma série de TV, que evidencie tal verdade, coloca-se mais próximo à vida, de maneira brutalmente honesta. A ela parece inquestionável a importância de produções artísticas que nos confronte com o nada — premissa a partir da qual podemos, quem sabe, alcançar um vislumbre de tudo.
Ela mostrou o texto a ele, que, depois de tê-lo lido, sentenciou: “É... acho que, ainda assim, caso essa tenha sido a sua intenção, você não fará com que muita gente comece a assistir Seinfeld. Sabe disso, né?”
Rindo, ela observou um fato de que sua própria vida era testemunho: “Nunca subestime o poder de influência de um texto que fale sobre nada”.
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“A mais recôndita memória dos homens”, de Mohamed Mbougar Sarr, foi traduzido por Diogo Cardoso e publicado, no Brasil, pela Editora Fósforo. Dá uma olhada: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/a-memoria-mais-recondita-dos-homens/
A cena de Seinfeld a que se faz referência no texto você pode assistir aqui, ó:
Eu achava que Seinfeld era dos anos 90...