Não se lembra bem do que tocava no rádio. Sabe, no entanto, que seu carro estava na faixa da esquerda, uma que, na verdade, ela raramente usa, pois no geral prefere a segurança de poder dirigir mais devagar. Ao seu lado, na faixa da direita, havia um outro veículo, muito provavelmente prata, pois ela se lembra de ter enxergado, com o canto do olho, o brilho que se expande quando o sol por acaso se reflete na cor prata. Olhando para frente, de repente se deu conta de que havia um objeto na pista. Uma espécie de ponto escuro. Dentro de um carro, tudo acontece rápido demais. O que estava longe, de repente se aproxima. Parece óbvio, mas não custa recordar: a velocidade que se atinge atrás de um volante é muito diferente daquela que se alcança andando a pé.
Metros adiante, ela entendeu o que era o ponto preto. Seus lábios se separaram em espanto, deixando que o ar lhe entrasse pela boca. Já não havia ponto preto. Em seu lugar, havia um contorno bem delineado, que seu cérebro se ocupou em processar, devolvendo-lhe, segundos depois, a figura a que aquele contorno correspondia. Era um ser vivo que, no entanto, ainda mais próximo agora, ela constatou: já estava morto. Naquele momento, no entanto, diante do volante, suas mãos o domínio único de sua direção, ela pensou não não não, minha roda não pode passar por cima ele, não! Apressou os olhos em direção ao carro ao lado, que, para sua infelicidade, estava colado ao dela. Não parecia haver qualquer espaço para uma guinada que lhe permitisse não reatropelar o animal já morto.
Enquanto calculava a distância, os olhos no motorista ao lado, que, por sua vez, contemplava, tranquilo, a estrada diante de si, na condição de quem ignora tanto a existência dela quanto a do gato estirado na pista, ela de repente sentiu. Piscou os olhos por um segundo mais longo, assimilando o feito. Acontecera. O carro havia reagido ao incômodo, movendo-se sutilmente, como se passasse por uma pedra um pouco grande demais. E, no entanto, tudo permanecia inalterado. Havia um carro atrás do dela, que seguiu, com normalidade, o seu trajeto. As pessoas que caminhavam ao redor da pista, no bosque, sequer olharam para ela, para seu carro ou para a roda que, aos olhos dela, agora devia dar a ver, aos espectadores, sua sujeira.
Estacionou o veículo, um pouco zonza. Cogitou a imagem irracional de que, ao descer do carro, se depararia com o sangue tingindo a roda de vermelho. Parecia-lhe, embora esse não fosse o caso, que de repente ela era quem havia matado o gato já morto na pista. Engoliu em seco, descendo do carro. O ar se disponibilizava a ela com dificuldade. Uma vez em pé, jogou a cabeça para trás, testa em direção ao céu. O sol fazia formigar as bochechas. Dois corredores passaram um ao lado do outro, e o som das pedras que suportavam o impacto de seus pés a trouxe de volta para o factível. Não foi você, ela pensou. Não foi você quem matou o gato. Ele já estava morto. Você só não conseguiu desviar de seu corpo morto a tempo. Abriu os olhos, decidida a encarar as rodas do veículo. Limpas. Como se nunca tivessem encostado em carcaça nenhuma. Uma pessoa que caminhava sozinha a olhou por um instante que pareceu desnecessariamente longo. Ela ponderou que alguém por fim diria eu vi o que você fez. Por que você não desviou do gato morto? Não há sequer um resquício de piedade em você? Suspirou alto, fechando os olhos mais uma vez. Identificou um gosto estranho que, semelhante a um xarope ruim que nos forçam a engolir, descia-lhe a garganta. Decidiu que o amargor na boca funcionaria, de fato, como um remédio, e deixou de oferecer resistência aos pensamentos.
Era estranha a sensação que a dominava. Sabia que não havia matado o gato, sabia que, naquele momento, o gato já não era um gato, era apenas a carcaça de um gato. Ainda assim, não podia deixar de se sentir culpada, como se fosse possível que sua roda, por cima do corpo do gato, fosse capaz de ressuscitá-lo para, então, no mesmo movimento, matá-lo uma segunda vez. Lembrou-se, de repente, de uma reflexão um tanto quanto lugar comum, que já tinha ouvido da boca de mais de um conhecido: “O pensamento é o ensaio da ação”. Alguém já havia formulado uma ideia que percorresse o caminho contrário? A ação fora efetuada, e inclusive em contrariedade à vontade, fora efetuada sem mais nem menos, fora efetuada de maneira involuntária, a ação simplesmente acontecera, a ação se desenvolvera enquanto um acidente, e, só então, uma vez concretizada a ação, é que o pensamento surgia, numa espécie de contágio?
Ela jamais ensaiou o atropelamento de um gato. E, no entanto, depois de ter experimentado, no interior do carro, o balanço irregular do automóvel, a sensação comprobatória de que sua roda havia, de fato, passado por cima do animal, ela não conseguia afastar o pensamento de que talvez ela própria tivesse matado o gato. Ainda que o gato já estivesse morto, o ato, em si, era o mesmo de quem o havia efetivamente assassinado. O mesmo atropelamento. A mesma sensação da roda que atropela o corpo. Talvez, diferença única, sem a resiliência de um corpo vivo que deseja manter sua mobilidade. Talvez na ausência também de uma expressão de dor. Mas o ato, em si, era um único — o que resultava no pensamento inevitável de que ela era, também, um pouco assassina.
Lembrou-se dos parágrafos com que o autor norueguês Karl Ove Knausgård deu início ao livro “A morte do pai”. “Estamos”, ele escreveu, “permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos”. Por que ninguém havia retirado o gato da pista? Quanto tempo havia passado desde a sua morte? Os questionamentos a traziam para dentro do que lhe parecia ser uma crise labiríntica.
Knausgård prossegue, ponderando, então, como quem prevê a inquietude de seu leitor, que “os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado dali no mesmo instante, não faz mal nenhum que o corpo continue no chão até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde, talvez mesmo à noite. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença fará? Porventura o destino que o aguarda na cova será melhor somente porque não o presenciaremos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa, pois ele não vai morrer outra vez”.
“Ele não vai morrer outra vez”. A conclusão do parágrafo ressoa em sua cabeça, como um fechamento que, no entanto, não apresenta nenhum alívio. É um fato — o gato não morrerá uma segunda vez. E, ainda assim... o corpo dele ali, disponível, estendido na rua, de modo a fazer com que às vezes um carro, como o dela, não consiga desviar dele a tempo, abre espaço ao pensamento e, mais, à sensação, de que agora, apesar de ele não poder morrer uma segunda vez, agora foi ela quem o matou. Foi a vez dela de matá-lo. A exposição do corpo torna possível que, embora a morte continue a ser uma só, a encenação do assassinato se reproduza infinitas vezes — uma possibilidade que é, por si só, nauseante o suficiente para que desejemos afastá-la, levá-la para longe, tanto quanto aquele corpo inerte é digno de que o levem para longe da conjuntura que o ceifou a vida.
Doeu dar este like pensando no bichinho.
Crônica de almanaque!!!