#18 Notas sem rodapé
O que significa ser um herdeiro certo? Uma conversa sobre o personagem Kendall Roy, da série "Succession"
A você que já assistiu à “Succession”, as apresentações se tornam desnecessárias. Mas, se você ainda não acompanha a série, talvez importem algumas informações: o enredo nos apresenta Logan Roy, dono de um dos maiores conglomerados midiáticos, o império Waystar Royco. Logan Roy está próximo de completar seus 80 anos, fato que, aliado a diversos outros acontecimentos da série, levanta o questionamento quanto à inevitável sucessão de Logan e qual de seus quatro filhos seria escolhido para sucedê-lo.
Kendall Roy, um dos filhos de Logan, interpretado pelo magistral Jeremy Strong, parece estar mais próximo de ocupar o cargo. No primeiro episódio da série, nós entendemos que houve uma espécie de “promessa” de Logan a Kendall, mas, ainda neste primeiro episódio, Logan decide que não vai se aposentar, afastando Kendall da realização de um sonho que parecia ao alcance das mãos.
Para mim, foi inevitável me sentir impactada e, muitas vezes, emocionada pelos acontecimentos que envolvem o personagem Kendall, que é, talvez, arrisco-me a supor, o personagem mais complexo da série. Em determinado momento do enredo, Kendall pergunta ao pai se de fato, algum dia, o pai o teria escolhido como sucessor. A resposta de Logan é a de que o filho não era “matador” o suficiente para ocupar o cargo de CEO da empresa. Em outras palavras, era fraco, enquanto Logan, por sua vez, faria o que fosse preciso para se manter no poder.
No último episódio, Kendall alcança, enfim, o inimaginável: ele se tornou uma espécie de cópia do próprio pai. Ele está pronto para fazer o que lhe for solicitado, para ser o mais egoísta o possível. Kendall se sente pronto, inclusive, para negligenciar a vida de outras pessoas, para negá-las a existência, e para mentir sobre o que quer que seja requisitado dele. Sua irmã, Shioban, horrorizada ao constatar a transformação completa de Kendall na figura do pai, nega a ele o voto que lhe concederia o cargo de CEO da empresa Waystar Royco.
O final da série nos mostra um Kendall que, conforme o mencionado pelo ator Jeremy Strong, perdeu tudo: Kendall é, enfim, “[...] someone who has finally lost everything. He’s lost his father. He’s lost his morality. He’s lost, in a sense, his soul, he’s lost his brother and sister. He’s lost his children. He’s lost love. And he’s lost his ambition, which is a defining thing for him in his life”.
O ator menciona ter ficado devastado com o final de Kendall Roy, pois é tarde demais para ele: ele já não consegue se imaginar como nada além do que uma cópia fiel de seu pai — como se esse fosse um personagem para o qual ele passou a vida toda se preparando, e esperando, apenas, pelo momento de subir ao palco e dar início oficial à performance. Uma vez que essa possibilidade lhe foi, definitivamente, negada, no olhar do Kendall o que enxergamos é o nada — o que é, de fato, bastante devastador.
No podcast de Succession, da HBO, está disponível uma entrevista com o ator Jeremy Strong, que deu vida ao personagem Kendall. Uma das primeiras perguntas feitas a Strong é: “Será o Kendall a manifestação da pergunta mais profunda que todo filho deve responder: eu me tornarei a pessoa que meus pais esperam que eu seja ou me afirmarei como um super humano independente deles?”
O ator replica que a pergunta é, de fato, central, e é certamente a pergunta ao redor da qual a série toda se desenvolve. O ator menciona alguns dos questionamentos que guiaram os roteiristas da série: “Pode-se escapar da família? Pode-se escapar de um legado? Pode-se sair debaixo da sombra desse legado ou ele se torna uma espécie de planeta que está sempre exercendo uma força gravitacional que nos define?”. Em outro momento, ele diz que, infelizmente, o Kendall não sai debaixo dessa sombra, o Kendall não escapa da família e, “mesmo quando ele tenta se libertar, ele ainda se define por oposição ao pai”.
Esse é o gancho de que eu faço uso para introduzir o livro “O complexo de Telêmaco”, do psicanalista Massimo Recalcati, publicado pela editora Âyiné, e, em específico, o capítulo “O que significa ser um herdeiro certo? A herança como reconquista”. O psicanalista dá início ao capítulo por meio da menção ao texto “Compêndio de psicanálise”, de Sigmund Freud, a partir do qual ele define o ato de herdar “como uma reconquista”.
A fim de que se ilustre o conceito de herdar, pensemos nas palavras, na linguagem: “Nós não somos mais do que o conjunto estratificado de todos os traços, as impressões, as palavras, os significantes que, provindos do Outro, constituíram-nos. Não podemos falar de nós mesmos sem falarmos dos Outros, de todos aqueles Outros que determinaram, fabricaram, produziram, marcaram, plasmaram nossa vida. Nós somos nossa palavra, mas nossa palavra não existiria se não tivesse sido constituída pela palavra dos outros que nos falaram. [...] Uma vida não é outra coisa que não seja esse aprender a falar a própria palavra através da palavra dos outros”.
Herdar seria, então, “aprender a falar a própria palavra através da palavra dos outros”. Trocando em miúdos, o ato de herdar implicaria em fazer algo nosso a partir daquilo que recebemos de nossos pais. Sendo assim, o herdar não pode ser, então, “uma repetição passiva” dessa palavra e da memória do Outro. “A herança, diz-nos Freud, é o efeito de uma reconquista do que foi, é o produto de uma escolha, de uma assunção subjetiva de toda a nossa história, que é, acima de tudo, a história do Outro”.
Em um subcapítulo intitulado “O excesso de memória”, Massimo Recalcati explora, em específico, o que eu acredito que tenha sido a problemática do personagem Kendall: Recalcati diz que “o movimento do herdar - a reconquista da herança - sempre pode fracassar. A psicanálise evidencia dois modos fundamentais desse fracasso. Um deles ocorre quando a herança é vivida como ‘mera repetição daquilo que já foi’”.
Ora, “se herdar é um movimento de reconquista [...] o herdar não pode ser reduzido a uma simples repetição do passado, a um movimento passivo de absorção do que já foi”. Herdar não é reproduzir àquilo que já aconteceu. Aliás, como afirma o psicanalista, “a repetição do passado, o excesso de identificação, de colagem, de alienação, sua absorção passiva ou sua veneração são maneiras de mostrar como o ato de herdar fracassa”, motivo pelo qual Freud ressalta que a herança é, acima de tudo, “uma decisão do sujeito, um movimento de ‘reconquista’ que se lança para frente’”.
A meu ver, Kendall tenta, em diversas oportunidades da série, reunir forças para executar o movimento de reconquista, mas em todas elas o personagem fracassa, de modo que, por fim, se resigna à “repetição” do pai, ao “excesso de identificação”, “à absorção passiva” e acrítica das condutas perpetradas por Logan, seu pai.
A reconquista do herdar, nos termos de Recalcati, significa subverter a replicação passiva de um modelo, e não interpretar a herança como repetição, como uma fidelidade absoluta ao modelo herdado, como uma dependência sem diferenciação, como uma obediência sem crítica. Recalcati resumirá tais pontos, afirmando que “para reconquistar e, portanto, para ser realmente detentor da própria herança, não se pode ficar parado e perto demais daquilo que o morto nos deixou.”
Kendall deveria, portanto, afastar-se do modelo de quase desumanidade que Logan o deixou, quando, ao final, na verdade, se limitou a tentar repeti-lo, mostrando-se não só disposto, como na verdade capaz, de ser exatamente aquilo que o pai foi.
Para herdar, diz Recalcati, “é preciso fazer aquilo que Lacan chamou de ‘o luto do pai’”. Caso contrário, o que se observa é uma identificação rígida na direção de um ideal, a mera repetição de um modelo. Por isso, Recalcati pondera, “é necessário nascer uma segunda vez, romper com o familiar, deixar a própria casa, desenraizar-se. Nascer é matar, quebrar a concha, lançar-se nas contingências sem limites, existir em uma descontinuidade radical em relação a tudo aquilo que já foi”.
Massimo Recalcati finda o capítulo, explicitando que “quando Freud fala da herança como uma reconquista [...] as raízes não encerram a identidade, mas devem ser continuamente retomadas por um movimento de errância. [...] É necessário manter uma memória do passado, mas apenas para alcançar, em seu auge, um ponto de esquecimento que torne possível o ato inédito e singular capaz de introduzir novos significantes. A herança como reconquista nunca é a fidelidade acrítica do passado, [...] mas implica o esquecimento como força, implica a força do esquecimento. Trata-se sempre de escolher o que se herda”.
Para mim, como espectadora que se apegou ao personagem Kendall Roy, que se emocionou em mais de uma ocasião diante dos acontecimentos que lhe reviraram a vida, foi desolador assistir ao fracasso do personagem em “escolher o que se herda” e, portanto, seu fracasso em concretizar “o ato inédito e singular capaz de introduzir novos significantes”. O final de Kendall, para mim, foi, implacável e definitivamente, o mais triste de toda a série.
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“Succession”, série de Jesse Armstrong, está disponível na HBO.