Diferentemente de meu marido, eu não consigo “gostar” de uma coisa e simplesmente seguir adiante, voltando-me aos compromissos da rotina e relegando, à coisa de que gostei, um espaço mínimo no fundo do cérebro.
Assim que terminamos de assistir ao filme “A substância”, da diretora francesa Coralie Fargeat, Matheus se recolheu e disse: “Bem, é hora de dormir. Vamos?”. Eu, por minha vez, parecia incapaz de me levantar do sofá, de desligar a TV e, em especial, de fazer com que meu rosto assumisse qualquer outra reação que não a de choque.
Embora frequentemente eu me defina como uma pessoa pouco sociável, quando experiencio um evento assim envolvente — que pode me surgir enquanto um fenômeno audiovisual, ou em decorrência da leitura de um livro, por exemplo —, eu preciso falar com alguém.
Sendo assim, comecei a procurar por pessoas que tivessem assistido e, em especial, falado sobre “A substância”. O primeiro podcast com que deparei foi o do “Critics at large”, de que eu, particularmente, gosto muito. Em determinado momento, um dos apresentadores, a quem o filme não agradou muito, se pergunta, em uma tradução livre: “O quanto a Fargeat realmente se importa com o male gaze, com o espectro todo do envelhecimento feminino?” A outra apresentadora, depois de ouvi-lo, pondera: “Em outras palavras, o filme te pareceu oportunista”. “Talvez”, ele então responde.
Minutos depois, o apresentador volta a expressar seu descontentamento: “Eu só estou me perguntando se o filme tentou mudar minhas ideias a respeito do tempo presente, ou se ele só estava usando do tempo presente para me assustar. O que quero dizer é: ele funciona como crítica? O filme tentou ser crítico?”
Bem, todo questionamento é, naturalmente, válido, mas, em certo nível, talvez tenha faltado um pouco de pesquisa acerca da cineasta a ser contemplada pelo episódio em questão. Se estamos dispostos a levantar a pergunta quanto a um possível oportunismo de alguém, é interessante que tenhamos nos preocupado em nos munir de elementos que sustentem nossas suspeitas. A respeito do possível oportunismo de Fargeat, uma só página de respostas do sistema de busca Google talvez já fosse hábil a dissipar nossas dúvidas: dez anos antes de que Fargeat chegasse, enfim, ao seu segundo longa “A substância”, a diretora francesa foi responsável pelo lançamento de “Reality+”, curta-metragem atualmente disponível na Mubi, e no interior do qual ela abordou temas semelhantes, ou, sejamos diretos, os mesmos temas com que nos confrontamos em “A substância”, como o da distorção de imagem e o do padrão de beleza.
Outro posicionamento interessante do qual me vi diante é o do episódio “Quem quer ficar velha?” do podcast “Batom no dente”, roteirizado e conduzido por Iana Villela. Há um trecho, em especial, do episódio, em que Iana revela não ter gostado da cena em que [spoiler alert!] as duas personagens se agridem, porque, afinal, nós abrimos os jornais e mulheres estão, a todo tempo, sendo vítimas de violência. Sendo assim, na concepção dela, usar, uma vez mais, de violência para falar sobre vivências femininas não seria em nada disruptivo. Revolucionário, para a Iana, seriam as histórias em que mulheres envelhecem e são felizes, as histórias em que as coisas dão, enfim, certo para as mulheres. Não discordo de Iana e espero que vejamos, também, filmes em que mulheres se sintam felizes e realizadas.
Mas…
Aqui, chamo atenção para o momento em que Iana pensa a respeito de “duas mulheres se agredindo”. O filme nos lembra, incansavelmente, até, que não existem “duas mulheres” na história em questão, e que elas devem sempre se lembrar — bem como nós devemos, pois a narrativa insiste nessa ideia — de que são “uma só pessoa”. Sendo assim, não seriam duas mulheres se agredindo, ao menos segundo o que eu entendo, e sim uma só mulher agredindo a si mesma — independentemente do fato de que, em tela, nós vemos, literalmente, duas mulheres diferentes. Em especial, o que acredito que sejamos levados a enxergar é a cena em que a versão jovem de uma mulher agride a versão mais velha de si mesma, isto é, seu próprio eu mais velho.
Por que essa diferenciação me importa, afinal?
Prestemos atenção a algumas notícias dos anos de 2023 e 2024:
Com tais reportagens em mente, penso no quanto gostei de como a psicanalista Fabiane Secches dá início à sua resenha crítica do filme “A Substância”: “Toxina botulínica. Ácido hialurônico. Ácido retinóico. Bioestimulador de colágeno. Qual mulher nunca recorreu, ou ao menos recebeu a sugestão - de dermatologistas, de outras pessoas ou dos algoritmos das redes sociais - para usar essas substâncias?”
Toda essa minha digressão objetivava uma defesa à cena que Fargeat dispõe diante de nós, espectadores, em que a versão jovem, de uma mesma mulher, agride, copiosamente, sua versão mais velha, uma vez que tal dinâmica é, na verdade, bastante e, infelizmente, comum. Uma mesma mulher, em sua versão jovem, esmurrar e tentar, de fato, matar a versão mais velha, é a imagem que, a meu ver, está por detrás do sentimento que incentiva que mulheres se submetam a procedimentos absurdos, a custo, não raro, da própria vida. Para mim, portanto, é essencial o ponto em que Secches toca no momento em que analisa “A substância”: “A violência, quando explorada com propósito e sem sadismo, continua e precisa continuar tendo espaço no cinema, porque faz parte do mundo em que vivemos”.
Em entrevista ao podcast “Next Best Picture Podcast”, Coralie Fargeat é questionada a respeito do local a partir do qual “A substância” emerge para ela. Sua resposta se constrói a partir de um monólogo de minutos, no qual ela diz, dentre outras coisas, que seu desejo foi o de expressar, no cinema, o modo como ela se sentia a respeito dos temas abordados no filme. Para ela, o filme precisava, então, ser violento, excessivo, nada sutil, porque ela queria, sobretudo, que o filme alcançasse o nível do que ela passou praticamente a vida toda sentindo.
“Comecei a escrever o filme após os meus quarenta anos, quando comecei a me atentar a vozes internas que me diziam ‘sua vida acabou’, ‘ninguém mais se importará com você’ e ‘ninguém se interessará por você’. Eu pensei que precisava fazer algo a respeito daquilo, porque, ao dar um passo para trás, me dei conta de que, desde pequena, eu sempre estive um pouco preocupada com o meu corpo, com a forma como eu seria julgada pela sociedade, com o modo em que eu estava ou não estava me adequando aos padrões que me eram impostos, e pensei em como isso conduzia a um ódio de si mesma, quando então você pensa ‘eu não sou boa o bastante’, ‘tenho que mudar essa parte do meu corpo’. E então, quando finalmente se está feliz com uma parte, outra parte passará a incomodar. É um círculo infindável, que culmina em uma maneira diferente de a gente se posicionar nos espaços públicos. Acho que, enquanto mulheres, a gente é levada constantemente a se importar com o nosso corpo. Não podemos ignorá-lo, porque o mundo lá fora não o ignora. E eu queria escancarar isso ao mundo. Essa é a realidade. É isso o que está acontecendo. É isso o que o mundo está fazendo conosco. E esse movimento não é sutil, não é pequeno, não é delicado. É enorme, é violento, é excessivo”.
Nesse sentido, negar a existência de histórias em que mulheres tratam a si mesmas de maneira violenta talvez seja negar a realidade que deveríamos, em vez de escamotear, enfrentar. A meu ver, Coralie Fargeat não faz concessões em prol de um mundo que, a despeito de belo e possível, não é, ainda, majoritário, e se dispõe a enxergar, de maneira corajosa, a violência com que mulheres, em muitas das vezes, tratam a si mesmas. E esse ponto, por si só, faz, para mim, de “A substância”, um filme bastante válido de ser visto — mesmo apesar das ressalvas possíveis de serem direcionadas ao seu desfecho.
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Vamos, então, aos tantos links do dia.
O episódio do podcast “Critics at Large” é este aqui:
O episódio do podcast “Batom no Dente com Iana Villela” é, por sua vez, este:
Por fim, no que diz respeito a podcasts, o “Next Best Picture Podcast” e a entrevista à cineasta Coralie Fargeat é o seguinte:
Finalmente, para fechar as referências, o texto de Fabiane Secches para a revista Marie Claire:
https://revistamarieclaire.globo.com/google/amp/blogs/fabiane-secches/coluna/2024/09/a-substancia-beleza-e-juventude-como-valores-que-oprimem-todas-as-mulheres.ghtml
Ciao!