Reconheço ter chegado atrasada, de modo que muito provavelmente a menção a ser feita não funcionará como sugestão a quase ninguém. Recentemente, no entanto, passei a assistir “Law & Order: Unidade de Vítimas Especiais”, disponível na Netflix. Atualmente, eu estudo e trabalho com o Direito, sendo talvez de se imaginar que, ao chegar em casa, eu vá desejar, digamos assim, um afastamento da lei. A despeito disso, eu, de alguma forma, me deixei levar, semanas atrás, pela ideia de dar uma olhada nessa série a que todo mundo parece ter assistido em algum momento da própria vida.
Um dos episódios de que mais gostei até então foi idealizado pela escritora Marjorie David. Ele ocupa o número 8 e pertence à 6ª temporada, tendo ido ao ar em 23 de novembro de 2004. Seu nome? “Dúvida”. Quando se procura por ele no Google, a primeira informação que se obtém é a de que, neste episódio, “um professor é acusado de abuso sexual por uma estudante”. O professor em questão inclusive se oferece para enviar uma amostra de DNA, mas, de acordo com ele, o encontro e a relação sexual que se seguiu a ele foram absolutamente consensuais. Sendo assim, o episódio nos conduz a o que seria seu questionamento central: o que aconteceu, afinal de contas? Houve estupro? Houve consenso e, portanto, não houve estupro?
Mantive-me entretida com o episódio em comento precisamente porque ele acaba [spoiler alert!] de maneira abrupta, sem que jamais saibamos o que, de fato, o júri decidiu quanto à culpa ou inocência do acusado. Para os detetives protagonistas da série, Elliot e Olivia, é um alívio que o júri tenha de decidir o encerramento do caso, em detrimento deles próprios, à medida que, conforme a trama avança, ambos ficam sempre mais confusos em relação a quem estava de fato dizendo a verdade.
Pensem comigo: na série, o professor é um sujeito moralmente questionável, uma vez que, para ele, é absolutamente normal que ele se decida por namorar universitárias consideravelmente mais novas que ele. Sendo assim, a aluna a que o episódio faz referência, de quem ele, na noite fatídica do episódio, estava “avaliando o portfólio” enquanto bebiam juntos na casa dele, seria só mais uma universitária com quem ele faria sexo. Afora o fato de se envolver com alunas bem mais novas que ele, o professor tem uma filha sobre a qual parece manter um domínio estranho e quiçá absoluto. O detetive Elliot observa que, antes de responder ou dizer o que quer que seja, a filha sempre olha em direção ao pai, como se buscasse entender se ele aprova ou não o que ela está prestes a enunciar — uma espécie de censor prévio e onipresente. Embora possamos olhá-lo de modo reprovador, tais circunstâncias não fazem dele, ao menos não isoladamente, um estuprador.
Sendo assim, qual é a versão dele dos fatos ocorridos? De acordo com o acusado, o sexo foi violento e, em toda sua violência, consensual. Nas palavras do professor, foi ela, a aluna, quem pediu que ele fosse violento, e que o mordia e agredia se ele assim não o fizesse. Ainda: para ele, a acusação de estupro talvez seja o modo como ela respondeu ao fato de que ele não se impressionou com seu portfólio, sugerindo a ela que ainda havia muito o que melhorar em sua produção artística.
A aluna, por outro lado, parece extremamente abalada, embora também levante dúvidas (e por isso o nome do episódio) acerca de suas ações: uma ajuda oferecida a ela pelo detetive Elliot faz com que ela o acuse de tentativa de abuso sexual, por exemplo. Além disso, descobriu-se que, tempos antes, ao dirigir bêbada e ser flagrada pela polícia, ela mentiu, muito naturalmente, a respeito da suposta morte da avó, convencendo os oficiais a deixá-la livre. Por fim, ela forja um suicídio e planeja que ele seja descoberto a tempo pelos detetivos do caso, o que talvez possa ter sido uma estratégia de convencimento de sua parte.
Sabemos, portanto, que ambos são um pouco mentirosos e bastante manipuladores. Ainda assim, envolver-se com mulheres mais novas, apesar de bastante problemático, não é o mesmo que estuprar alguém. Por outro lado, inventar cenários, a despeito do fato de eles envolverem acontecimentos sérios, como a morte da própria avó, não implica em dizer que essa pessoa seria, então, capaz de mentir sobre absolutamente tudo e em qualquer circunstância, inclusive sobre um possível estupro.
Complicado, não acham? Eu queria tanto conversar com alguém sobre esse episódio que acabei chegando a uma comunidade de espectadores de Law & Order. Lá, um sujeito que se intitulou como “NotAngryAndBitter” inseriu o seguinte comentário: “Fiquei indo de um lado para o outro durante os anos seguintes desde que o episódio saiu, mas finalmente me decidi: eu acho que ele era culpado, mas não acho que ele seria condenado, porque ela era, afinal, uma vítima um pouco problemática, e chegar a uma convicção que estivesse ‘além da dúvida razoável’ teria sido difícil”.
Outra pessoa, desta vez de nome “nettlestars”, expôs: “Minha conclusão é a de que ela foi violentada, mas que, ao mesmo tempo, ela não era uma pessoa boa e confiável. Ela parecia manipuladora, desleal, agressiva, de temperamento curto, às vezes cruel e bem mentirosa. Pessoas ruins também podem ser estupradas, não quer dizer que não tenha acontecido ou que elas mereçam. No entanto, acho que o júri provavelmente deu o veredicto de ‘inocente’, pois até mesmo vítimas ‘perfeitas’ lutam para conseguir condenações de estupro e esse caso tinha elementos contraditórios demais para levantar uma tese que se sustentasse ‘além de uma dúvida razoável’”.
Paro por aqui quanto às considerações que dizem respeito ao contraditório culpado-inocente. O que me interessa é, na verdade, que possamos formulá-las, que a escrita do episódio permita que nos questionemos a respeito daqueles personagens, de suas personalidades e motivações, e que não nos subestime, de modo a nos entreter com personagens fáceis ou óbvias demais.
O episódio me fez relembrar um pouco das minhas aulas de teoria literária, no decorrer das quais estudamos a distinção entre as personagens ditas “planas” e a “esféricas”. As planas são, como o próprio nome indica, aquelas que nos chegam quase como uma caricatura. São personagens que se sustentam a partir de uma única ideia ou característica. Sendo assim, não há surpresas em relação a elas, e nossa compreensão as capta de pronto. As personagens esféricas, por sua vez, de acordo com o grande e próprio Antonio Candido, “são organizadas com maior complexidade e, em consequência, são capazes de nos surpreender”. O que uma personagem esférica faz é “trazer a imprevisibilidade da vida” dentro de si.
Embora eu já não estude literatura, e apesar do fato de que aqui a gente sequer está discutindo uma obra literária, o episódio “Dúvida”, de Law & Order, me pareceu muito didático no que diz respeito a esses conceitos: tem-se um suspeito quase condenável demais, o que faria dele uma personagem plana, mas o enredo nos convence de que não devemos incriminá-lo (aqui, literalmente) com tanta rapidez; ao mesmo tempo, temos uma vítima que não se aloca naquele lugar tipicamente associado às vítimas, ou ao menos àquele lugar em que por vezes gostamos de imaginar que as vítimas estejam, aquele em que nos parece fácil projetá-las. Assim, os personagens assumem dimensões outras, diante das quais não conseguimos, ao menos não de maneira veloz e sem titubeio, afirmar quem eles são e o que efetivamente fizeram.
No mesmo texto já citado acima, “A personagem do romance”, Antonio Candido pondera que “o romance [pensemos aqui na arte de um modo mais geral], ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia”, ele nos lembra, “há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro”.
Tal qual a vida, a arte nos coloca frente a situações que são fragmentárias, insatisfatórias e incompletas. Ao se findar, o episódio “Dúvida” nos comunica: it’s up to you, baby. O que é você acha, para além da resposta pronta que esperava que nós te déssemos? De que elementos você faz uso para construir suas convicções? A quais circunstâncias você tende a reduzir o indivíduo com que se depara, a fim de interpretá-lo de acordo com o que lhe parece mais suportável ou convincente? Aliás, convincente… é assim tão necessário que estejamos sempre convencidos?
Não éramos nós os jurados no episódio “Dúvida”, de Law & Order. Sendo assim, não há, ao menos para nós, a obrigatoriedade de uma decisão que avance demasiado apressadamente. No que diz respeito a mim, eu gosto é da possibilidade de não saber. Bem... o meu eu com resquícios das Letras gosta. O eu que agora se direciona ao Direito talvez prefira acreditar que seja possível chegar a uma versão que mais adequadamente se intitule como a verdade.
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Querem saber um pouco mais sobre o episódio? Eu gostei deste texto aqui, ó:
https://www.distractify.com/p/law-and-order-svu-myra-and-ron-ending
O Antonio Candido você pode ler aqui, veja só:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/8546577/mod_resource/content/1/CANDIDO%20A%20Personagem%20do%20romance.pdf