Até então, viviam em um apartamento sem estantes. Na ausência de prateleiras, todo o espaço que os livros conseguiram reivindicar foi o das gavetas do rack da sala de TV. Nem sempre foi assim, mesmo porque ela nem sempre morou ali. O apartamento era dele, e o projeto arquitetônico havia sido ideia de uma ex-namorada dele, que, ao que tudo indica, não era uma pessoa muito chegada a livros. O design privilegiava o ambiente dedicado à TV, que era amplo a ponto de que se pudesse assistir ao que quer que fosse enquanto se estivesse na sala ou na cozinha. Quem é que fazia questão de assistir TV enquanto está na cozinha, alguém talvez venha a se questionar, como ela mesma o fez. Ao que parece, havia quem fizesse.
O apartamento era, além disso, cheio de espelhos. Mais tarde, eles descobririam que os espelhos funcionavam como uma espécie de empecilho ao sinal de internet, de modo que a conexão, não raro, se rompia. Antes de que o soubessem, no entanto, ela já se incomodava com aquela quantidade de espelhos. Qual contexto justificaria que ela precisasse, assim com tanta frequência, desse enfrentamento com a própria imagem? Tantos espelhos, e nenhuma estante para os livros.
Mesmo agora, depois de casados, eles continuavam a habitar o apartamento cujo projeto de arquitetura fora orientado a partir das preferências da ex-namorada dele. A ideia era esperar até que encontrassem a casa que lhes parecesse ideal — com jardim para o cachorro que já tinham e para os tantos outros que ainda gostariam de ter, bem como com um cômodo que fosse todo dedicado à organização de uma biblioteca. Por ora, no entanto, ainda no apartamento, afinal a vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos, alocaram uma estante de livros onde antes havia mais uma das muitas paredes espelhadas.
A ideia da arquiteta deve ter sido a de tornar o apartamento maior, uma amiga sugeriu a ela. Franzindo a testa, ela acomoda esse pensamento, mas a lógica ainda não a convence. Por que é que fazemos tanta questão de nos iludirmos? Por que insistimos em nos enganar com uma versão das coisas que, na verdade, como bem sabemos, não é real?
Bem, ela logo recua, uma estante de livros não deixa de simbolizar, para ela, um modo de enxergar para além do que existe. Ao abrir um Murakami, por exemplo, não é pela realidade, pura e simples, que ela procura. Talvez a fascinação que algumas pessoas sentem por espelhos tenha algo que ver com o deslumbramento pelo qual um outro alguém se vê tomado quando em frente a uma estante de livros.
Uma vez imerso em um daqueles títulos, também se quer acreditar que o espaço possa ser maior; que o mundo, de alguma maneira, possa ser maior. Ela mesma se recordava da infância em uma cidade minúscula, à qual talvez só não tenha sucumbido à medida que se deu a sua descoberta da literatura.
Pode ser que haja ainda uma semelhança no que diz respeito àquilo que a dupla reflete, seja o espelho, seja a estante. Ambos nos colocam diante de nós mesmos. Não é possível, ao menos é nisso que ela teima em acreditar, que nossos livros não nos contem de nós.
O acervo que agora finalmente descansa em uma estante adequada vai de Linguística à Direito, e evidencia facetas provavelmente menos visíveis nos espelhos tradicionais — aquela de quando se tentou aprender francês, a do período em que se voltou à filosofia, todas as influências feministas, os títulos estrangeiros que fazem ressoar lembranças das poucas viagens ao exterior e, como não poderia deixar de ser, a da adoração pela literatura, que lá figura desde a última à primeira prateleira, como quem sabe um ponto de partida e possivelmente também o de chegada.
Quando posicionada de frente à estante, é dela mesma que ela se vê diante.