“The Van Buren Boys” é o centésimo quadragésimo oitavo episódio de Seinfeld, situado, mais especificamente, na oitava temporada da sitcom, correspondendo ao episódio de número quatorze. Nele, deparamos com o fato de que a personagem Elaine assumiu o papel de escritora-fantasma da biografia de seu patrão, Mr. Peterman.
O conflito tem início quando se entende que o Mr. Peterman não encarna uma vida sobre a qual alguém gostaria de ler. Em determinado momento, Elaine cogita ajudá-lo a pensar em quais das suas experiências poderiam ser interessantes para a composição do livro. A título de exemplo, ela compartilha com ele uma das histórias de Kramer, que, para quem nunca assistiu a Seinfeld, é outro dos personagens do elenco.
O resultado é que o Mr. Peterman não escuta a história de Kramer como quem, a partir de então, fará esforço para entender quais dos acontecimentos de sua própria vida instigariam a curiosidade de um possível leitor, mas sim como quem está acostumado a resolver seus problemas com dinheiro. Em outras palavras, Mr. Peterman decide comprar as histórias de Kramer. Todas elas, sem exceção.
De início, a notícia é bem recepcionada por Kramer: seiscentos dólares, se não me engano, foi o que o Mr. Peterman pagou por todas as suas histórias. No entanto, com o decorrer dos dias, Kramer passa a repensar a própria decisão. Sabe quando a gente se senta em uma mesa de bar entre amigos e passa a relembrar acontecimentos de anos, meses, ou mesmo de semanas atrás, repensando, uma vez mais, sobre todos eles, e quase não acreditando que de fato fomos nós os protagonistas desses momentos? Kramer já não pode fazê-lo. Suas histórias pertencem, a partir de então, ao Mr. Peterman, que as registrará em um livro de sua autoria.
Para que bem constatemos a angústia de Kramer, há uma cena do episódio em questão em que, durante um encontro entre amigos, alguns deles passam a insistir que Kramer conte, novamente, “aquela determina história”. O personagem chega mesmo a dar início ao relato, seu instinto vencendo a força do contrato assinado com Mr. Peterman. Elaine, no entanto, o relembra: “Essa história não é sua. Ela não aconteceu com você. A história pertence ao Mr. Peterman”. Em seguida, o que vemos são os amigos do Kramer que vão embora do bar e o deixam sozinho, circunstância que, embora dramática, nos chega como a inferência de que, na ausência de nossas experiências, talvez pouco sejamos ou nada tenhamos a oferecer.
Depois de reassistir ao episódio, ficamos conversando, Matheus e eu, tagarelice no decorrer da qual ele de repente me lança o seguinte questionamento: “Quais das suas histórias você venderia?”. Nos primeiros cinco minutos que se sucederam à pergunta, achei que fosse inevitavelmente me entregar a uma crise existencial. Nada que parecesse hábil a atrair um businessman como o Mr. Peterman me vinha à cabeça.
Na manhã seguinte, no entanto, foi como se eu tivesse aberto os olhos, recém-despertos, com aquela experiência ali, diante de mim, acenando-me com o braço. Não sei se a história envolve qualquer valor comercial e, na verdade, espero que não, de modo a que pelo menos eu consiga conservar certos compartimentos da minha vida no interior dos quais o dinheiro não assume a importância máxima.
Fui levada de volta ao dia 28 de julho de 2024, na comuna italiana de Otranto, na região da Puglia, na Itália. Era a nossa lua-de-mel. Passamos o dia todo nas áreas comuns de um dos hotéis mais lindos onde já estive — talvez definitivamente o hotel mais lindo em que eu já estive. Largados na piscina, pedimos um vinho rosé e comemos, para que o álcool tivesse ao menos um obstáculo à sua rápida chegada ao cérebro, um salgadinho chamado “crostini dorati”. Na embalagem, lia-se: “semplici e croccanti”, descrição que julguei realista o suficiente.
No final de tarde, fomos ao centro da cidade. Fazia calor e eu me lembro de que deixei que meu cabelo molhado tocasse meus ombros, refrescando-os durante todo o percurso. Em julho de 2024, eu ainda mantinha meus cabelos relativamente longos. Uma vez em frente ao Castello Aragonese, descobrimos uma exposição cujo título dizia: “Frida Kahlo. Una vita rivoluzionaria”. De acordo com as informações ali dispostas, a mostra teria tido início em 27 de março de 2024, e seria possível visitá-la até 15 de novembro.
Reportagens sobre a mostra a definiam como “uma homenagem a uma mulher que, ainda hoje, é exemplo indelével de resistência e coragem”. De acordo com o prefeito de Otranto, Francesco Bruni, “a mostra oferece um olhar íntimo para a vida de Frida e para as suas paixões intelectuais e humanas, destacando o seu papel pioneiro em muitas das batalhas sociais de seu tempo”. O prefeito, aparentemente culto no que diz respeito às artes visuais, acrescenta: “Como disse o crítico de arte Francesco Bonami, a arte de Frida Kahlo é imediata”.
Após o jantar, nós andamos pela cidade em busca de uma gelateria. Fotografei uma ruela a partir da qual se ganhava perspectiva do mar, depois de que descemos por ela, descambando em uma via repleta de restaurantes e outros estabelecimentos, dentre os quais uma gelateria.
Matheus, meu marido, sabe sempre quais sabores de sorvete deseja. Posicionou-se na fila, decidido, e aguardou, com pacificidade, a sua vez. Eu, no entanto, lembro de me sentir apavorada diante de tantas escolhas possíveis. Tendo a uma repetição obsessiva quando se trata de prazeres, de modo que quase nunca me permito provar algo novo. No caso da gelateria, em específico, consciente de que o sabor de pistache havia me agradado, meu cérebro me impelia a seguir pelo caminho já conhecido. E, no entanto, chegada a minha vez, convencida já de que optaria pelo pistache, vi-me diante da vitrine que exibia o sabor “basilico”, isto é, manjericão, e, de maneira que surpreendeu sobretudo a mim mesma, respondi ao atendente italiano que meu gelato seria de um só sabor — de basilico.
Talvez meu leitor esteja se questionando qual montante eu de fato esperaria receber, de um senhor como o Mr. Peterman, em troca da experiência de se provar sorvete de sabor manjericão. Nenhum, eu admito. Para mim, todavia, o cerne da importância que atribuo a esse acontecimento não é sequer o gosto do manjericão na boca, que é, no entanto, definitivamente delicioso, e sim o fator de inesperado pelo qual me vi tomada.
De repente, flagrei-me frente a uma gelateria, e de fato cheguei a acreditar que eu fosse encenar mais um dos tantos momentos em que sou previsível para mim mesma. Contudo, diante da feição atenciosa do moço que aguardava a minha ordem quanto a com qual bola de sorvete ele deveria rechear o cone, é como se tivesse vindo à vida uma outra eu, com quem, talvez infelizmente, eu me depare menos: uma que se aventura, a despeito ou mesmo em razão do risco, e que se permite a possibilidade de se afastar dos trilhos já desgastados da ação.
Em um trecho conhecido como “O instante”, o filósofo Kierkegaard expressa que “se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria apenas um olho que, eternamente jovem, ardesse de desejo de ver a possibilidade”.
Pode ser que a citação pareça exagerada, considerando o fato de que estamos falando sobre escolher um sabor de sorvete diferente daquele pelo qual usualmente se opta.
De todo modo, o que me parece particularmente digno de relevância nessa história foi a surpresa com que meu corpo recepcionou um prazer de todo inesperado. Não havia, de minha parte, qualquer expectativa que pretendesse pré-determinar o sabor do sorvete de manjericão, de modo que eu não esperava que ele correspondesse a ideal nenhum — o que talvez tenha contribuído para o fato de que a primeira colherada me atingisse de maneira inesquecível.
Como Kramer, é provável que me angustiasse ter de me distanciar dessa história; ter de negar seu lugar na estrutura da pessoa que eu sou. De certa maneira, atrevo-me mesmo a dizer que a lembrança do sorvete de manjericão me acompanha diariamente, embora, em muitas das vezes, na vida cotidiana, eu não opte pelo o que possivelmente corresponderia a um “novo sorvete de manjericão”.
Em geral, sou uma pessoa pouco inovadora, que tende a reiterar roteiros a que já se vê habituada e que se irrita diante de qualquer acontecimento que afaste a ilusão de controle. No decorrer dos meus dias, semanas e até mesmo meses, é essa a faceta da qual todos se veem diante. E, no entanto, o fato de que o sorvete de manjericão tenha acontecido me evidencia a verdade de que eu não sou apenas essa pessoa; me revela a possibilidade de descoberta de prazeres nunca outrora antecipados, os quais, todavia, só se permitem conhecer quando ausente a urgência por domínio.
Inebria-me a imagem daquela mulher que lambia, de modo incessante e incrédulo, o sorvete de manjericão. Acordo, em sobressalto, e me interrogo onde ela está, em qual dos meus cantos escuros a aloquei, e de que maneira posso me aproximar dela, mantê-la por perto sem que ela me assuste com a sua liberdade, com seu desprendimento de toda clausura pela qual eu deliberadamente me deixo envolver.
De que modo recuperá-la, a ela e à sua paixão pela possibilidade; como insistir no contato visual com seus olhos que ardem “de desejo de ver a possibilidade”; de que maneira tocar a autodeterminação com que ela tomou a frente de mim e decidiu por um sabor a respeito do qual não havia nenhuma garantia... e onde, precisamente pela ausência de segurança, escondia-se um prazer autêntico e incontestável.
Em Seinfeld, Kramer não rescinde o contrato com Mr. Peterman. Há um episódio seguinte, no entanto, em que, na ocasião de lançamento do livro, Mr. Peterman se dispõe a autografar alguns exemplares. Kramer, conscientizando-se de tal fato, dirige-se à livraria onde o evento acontecia, retira a caneta da mão de Mr. Peterman e afirma o propósito de, ele mesmo, autografar os livros — afinal, era ele o verdadeiro autor daquelas histórias.
Provável que, dada a minha personalidade, eu não fosse capaz de semelhante intrepidez. Mas, a história do sorvete de manjericão... ah, ela me faria arrancar a caneta de Mr. Peterman. Ela pertence apenas a mim.