Vinte e quatro de janeiro de 2023 foi o dia em que o ator irlandês Paul Mescal foi indicado ao Oscar de melhor ator pela primeira vez. A nomeação aconteceu em consequência de sua atuação no filme “Aftersun”, dirigido por Charlotte Wells, onde interpretou o personagem Calum, um pai solo de 30 anos que tira férias com a filha na Turquia. O acontecido me deixou feliz como se fosse eu mesma, ou alguém de meu convívio íntimo, o alvo da indicação, e isso porque “Aftersun” foi um filme com o qual eu me envolvi de maneira bastante profunda. Não tanto quanto o próprio Paul Mescal, é evidente, que inclusive afirma em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian que sua principal lembrança do processo de filmagem de “Aftersun” foi quão íntima a história do filme lhe parecia. Ele acrescenta que, embora houvesse muita gente no set, a impressão que ele tinha era de que só estavam lá ele próprio, a diretora Charlotte Wells e a atriz com quem ele contracenou, Frankie Corio.
Na mesma entrevista, Mescal menciona uma cena do filme que foi, para ele, como um soco no estômago: Sophie, a filha de Calum, rejeita a oferta do pai de pagar aulas de canto para ela. “Acho esse momento particularmente emocionante”, conta Mescal, “porque você percebe como as crianças podem realmente apreender o centro das inseguranças de seus pais”. Ao falar da cena, Mescal se lembra de um episódio da própria infância e das ansiedades que o perturbavam quando pequeno. “Eu me lembro de crescer muito preocupado com a situação financeira da minha família porque é isso o que causa mais estresse para pais jovens”, ele constata. “Eu sempre me perguntava: será que as outras famílias têm discussões desse tipo?”
Mescal compartilha também outras questões que o atormentavam quando mais novo. “Apenas altos e baixos”, ele suaviza. “Você está passando pela puberdade, por irregularidades. Eu sentia que minhas mãos eram grandes demais para o meu corpo”, instante da entrevista em que ele balança as próprias mãos no ar. “Coisas normais, mas que tornaram aqueles anos particularmente difíceis”. O interessante a respeito da insegurança de Paul Mescal é que ela teve uma interrupção abrupta no momento em que o jovem irlandês deu início à sua carreira artística. No dia em que subiu ao palco pela primeira vez, Mescal afirma ter se sentido muito bem em relação ao próprio corpo. “Eu me senti confortável com minha masculinidade no palco [...] e acho que talvez tenha sido isso o que influenciou minha escolha por papéis como o de Calum, e o que me fez pensar em como a masculinidade pode ser expressa de muitas, muitas e muitas [a quantidade de “muitas” é de Paul Mescal, e não minha, deixemos claro] formas — um território ao qual provavelmente serei atraído, com frequência, ao decorrer da minha carreira”. A conclusão a que Mescal chega tem sentido sobretudo se complementarmos a ela a afirmação dele de que “a parte divertida de atuar” é a de fazer “o trabalho de detetive”, a partir de que ele se dedica a investigar o personagem a ser interpretado e a adentrar as “partes mais pesadas da psicologia dessa pessoa”.
Na série “Pessoas normais”, uma adaptação do sucesso literário da escritora irlandesa Sally Rooney, Paul Mescal interpreta o personagem Connell, alguém que também enfrenta desafios no que diz respeito à saúde mental. Connell consegue, diferente de Calum em “Aftersun”, expor os seus problemas a outras pessoas, o que culmina na abertura de que ele carecia para procurar ajuda profissional. Mescal reconhece, no entanto, que para muitos homens existe ainda algo “tradicionalmente aterrorizante” na ideia de falar, de modo sincero, sobre os próprios sentimentos.
Ter me deparado com a entrevista de Paul Mescal ao mesmo tempo em que lia o romance “Pessoas normais” fez com que um pensamento ganhasse força dentro de mim: Paul Mescal era o ator ideal [e eu prometo que, no geral, não costumo banalizar esse adjetivo] para interpretar Connell Waldron. Ao interpretar Connell, Mescal dá forma à sua ideia de defesa da multiplicidade com que acredita ser possível que um homem exerça o seu masculino. Em “Pessoas normais”, quando Connell começa a intuir a existência de algum conflito emocional a ser vencido dentro de si mesmo, ele expressa um sentimento semelhante ao de Mescal adolescente, que estranha as partes do próprio corpo quase como se cresse que elas não pertencessem a ele. A narradora [não consigo imaginá-la como um narrador, embora não me sinta apta a explicá-lo racional e teoricamente] do livro nos conta que “ao comer sozinho, entreouvindo as conversas alheias, mas sem conseguir participar, Connell se sente profunda e quase insuportavelmente alienado do próprio corpo”.
Há momentos específicos vivenciados pelo personagem Connell que chegam a lembrar de cenas interpretadas por Paul Mescal em “Aftersun”, filme em que o ator interpreta um segundo personagem que aparenta estar de acordo com o seu propósito de destacar outras formas, além das comumente dominantes, por meio das quais um homem pode vivenciar a sua masculinidade. Ouvimos sobre Connell que:
“Na noite anterior, passou uma hora e meia deitado no chão do quarto porque estava cansado demais para completar a jornada do banheiro para a cama. Havia o banheiro, atrás dele, e havia a cama, na frente dele, ambos dentro de seu campo de visão, mas por algum motivo lhe era impossível ir para a frente ou para trás, somente ir para baixo, para o chão, até seu corpo ficar imóvel no carpete. Bom, aqui estou, no chão, ele pensou. A vida é muito pior aqui do que seria na cama, ou em um lugar totalmente diferente? Não, a vida é exatamente igual. A vida é a coisa que você traz consigo dentro da própria cabeça. Poderia muito bem ficar aqui deitado, inspirando a poeira abjeta do carpete para dentro dos meus pulmões, aos poucos sentindo meu braço direito ficar dormente sob o peso do meu corpo, porque é essencialmente igual a todas as outras experiências possíveis.”
Em “Aftersun”, Calum chega a se deitar no chão em um de seus momentos de protagonismo do filme. O personagem se posiciona sobre um tapete turco pelo qual, podemos inferir, ele não tem dinheiro o suficiente para pagar, e nos permite um vislumbre de algumas das possíveis emoções que o perpassam, e que ele insiste em manter escondidas de sua filha, Sophie. Na imagem abaixo, vemos Calum, mas talvez, com um pouco de esforço, pudéssemos também enxergar Connell — ambos magistralmente interpretados por Paul Mescal.
Poucos parágrafos depois, em “Pessoas normais”, lê-se que Connell:
“Na noite anterior, fantasiou ficar deitado completamente impassível até morrer de desidratação, por mais tempo que demorasse. Talvez dias, mas dias relaxantes em que não teria que fazer nada ou se concentrar muito. Quem encontraria seu corpo? Não importava. A fantasia, depurada por semanas de repetição, termina no momento de sua morte: a pálpebra serena, silenciosa, que se fecha sobre tudo para sempre”.
Uma das cenas do filme “Aftersun” parece permitir uma aproximação à descrição acima. Calum caminha, à noite, em direção ao mar, simulando a intenção de adentrá-lo, de perder-se nele, de que o mais forte deles prevaleça e de que se tornem um só. A câmera que, apesar da baixa iluminação, concede-nos a princípio uma visão da água e do corpo do rapaz, acaba nos deixando em meio a uma escuridão completa, que engole os nossos olhos de telespectadores. Seria, semelhante ao que Connell expressa, o modo de Calum de fantasiar com “a pálpebra serena, silenciosa, que se fecha sobre tudo para sempre”?
A diferença primordial entre Connell e Calum talvez esteja no fato de que Connell busca por ajuda profissional para tratar a sua depressão. Em “Pessoas normais”, acompanhamos o momento em que o jovem preenche o formulário de atendimento psicológico da faculdade, um serviço gratuito pelo qual ele procura depois de se aconselhar com o seu colega de dormitório. A narradora de Sally Rooney relata que:
“Na sala de espera ele tem que preencher um formulário [...]. A segunda pergunta é intitulada ‘Pessimismo’. Ele tem que circular o número ao lado de uma das seguintes afirmações:
- Não sinto desânimo em relação ao meu futuro
1 Me sinto mais desanimado em relação ao meu futuro do que antigamente
2 Não tenho a expectativa de que as coisas deem certo para mim
3 Sinto que meu futuro é desanimador e só vai piorar
Ao ler a quarta frase, que por algum motivo foi qualificada com um ‘3’, Connell tem uma sensação de coceira na cartilagem do nariz, como se a frase o chamasse. É verdade, sente que seu futuro é desanimador e só vai piorar. Quanto mais pensa nisso, mais se identifica. Nem precisa refletir sobre o assunto, pois sente: a sintaxe parece ter se originado dentro dele [...]. Sem querer assustar a mulher que receberá o questionário, opta por circular a afirmação 2.”
Em “Aftersun”, Calum também não deseja assustar a pessoa com quem eventualmente estabelece um diálogo no filme, mas faz uma afirmação muito próxima ao que Connell afirma sentir em relação ao próprio futuro. O personagem admite que, para ele, foi uma surpresa ter chegado aos 30 anos, e que simplesmente não consegue se projetar capaz de chegar aos 40.
Em “Pessoas normais”, o diagnóstico de Connell é certeiro. A terapeuta que o atende na faculdade afirma que o questionário respondido por ele o coloca “no terreno de uma depressão seríssima”, depois de que constata também que “essas são coisas que temos que levar muito a sério”. Embora a questão seja, sem dúvidas, bastante séria, o preconceito por vezes velado, noutras vezes óbvio, frente aos diagnósticos psiquiátricos também se evidencia em “Pessoas normais”. Em determinado momento, um personagem homem que, antes, se considerava um colega quase próximo de Connell, afirma só tê-lo feito porque na época não sabia que ele era “fodido da cabeça”. Segundos depois, expressa ainda, a fim de provar o seu ponto: “Ele está tomando remédio e tudo, você sabia?”
Em entrevista para o site Esquire, a editora Adrienne Westenfeld aponta à Sally Rooney, autora de “Pessoas normais”, como é importante que Connell consiga admitir suas crenças depressivas e pedir ajuda: “Sabemos que, em termos de estatística, muitos homens, especialmente os jovens, têm dificuldade para assumir uma transparência quanto ao que sentem. O que faz com que Connell consiga ultrapassar essa barreira e procurar por ajuda profissional?
Sally Rooney responde:
“Acho que fatores socioculturais muito específicos como o fato de ele ser aluno de uma universidade que oferece um programa de aconselhamento gratuito, e um colega de quarto que disse a ele: ‘Olha, você deveria fazer uso desse serviço, é de graça’. O fato de um colega do sexo masculino ter dito ‘é aceitável que você faça isso’ e o fato de ele poder fazer isso sem nenhuma barreira econômica. Certamente, existem aspectos de gênero na habilidade que as pessoas têm de procurar ajuda para essas situações, mas também existem fatores socioeconômicos. Foi o fato de ele se encontrar em condições de poder pedir ajuda a primeira grande barreira vencida [...]”.
O trecho da fala de Rooney que atribui relevância aos fatores econômicos da busca por tratamento terapêutico não é nada trivial. Em “Aftersun”, o que o telespectador entende, em mais de um momento do filme — como, por exemplo, quando Sophie perde os óculos de mergulho caros que o pai havia lhe comprado — é que a condição financeira de Calum não anda bem. O personagem parece estar sempre na iminência de um novo negócio. Aquilo? Ah, não deu certo. Mas existe uma outra ideia e, veja só, ela aparentemente vai funcionar… uma afirmação diante da qual nós, que observamos Calum na pronúncia dessas palavras, não sentimos muita firmeza.
Mais tarde, na mesma entrevista, Westenfeld pergunta à Sally Rooney: “Quais você acha que são os maiores desafios enfrentados, hoje em dia, por homens jovens como Connell? O que eles estão enfrentando?”
A resposta de Rooney é longa e bastante abrangente. Em determinado momento, para o que nos interessa aqui, ela destaca: “Nós, enquanto cultura, estamos lutando para identificar formas de masculinidade que não sejam opressivas. Acho que existe uma sensação de profunda incerteza sobre a própria identidade que pode surgir quando você sente que está desempenhando um papel dominante em um sistema que, não necessariamente, você endossa. Não estou dizendo que esse seja um mal-estar que aflige a maioria dos homens jovens, porque não tenho absolutamente autoridade nenhuma para falar sobre o assunto. Mas acho que alguns homens estão buscando uma forma de masculinidade que não os faça se sentir uma má pessoa por estar envolvido com ela. Não acredito que nós, enquanto cultura, encontramos uma resposta para isso.”
Talvez atuações como as de Paul Mescal — em “Pessoas normais”, como um homem que se reconhece doente e procura por tratamento psicológico para voltar a sentir vontade de viver; em “Aftersun”, como um personagem que nos alerta em relação ao perigo de se negligenciar a importância da saúde mental —, em especial quando reconhecidas mediante uma indicação ao Oscar, sejam um indício de que nós, enquanto sociedade, embora ainda não tenhamos encontrado uma resposta definitiva para quais formas de masculinidade não são opressivas, estamos mais próximos de fazê-lo. Ou ao menos um pouco menos distantes.
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A nível de curiosidade:
Hoje o que eu peço é que você, leitor, me permita uma recomendação. A fim de explanar o tema abordado nesta newsletter, indico a você a leitura do fio que o professor Danilo Heitor compartilhou em seu Twitter pessoal. Heitor começa contando aos seus leitores que “exatos 14 anos atrás, quando meu pai morreu, eu estava na porta da UTI quando o médico saiu pra dar a notícia”. O fio todo é muito bonito, a ponto de se tornar comovente. Próximo do fim, Heitor reitera que “por quase um ano, eu chorei na hora do almoço sozinho, cada dia em um boteco diferente do centro de São Paulo. Sem vergonha nenhuma, como ele [o pai] me ensinou: homem chora, sim, e sofre, e sente”.
Leia o fio completo e se emocione comigo por meio deste link aqui, ó:
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A minha edição de “Pessoas normais”, de Sally Rooney, foi publicada pela Companhia das Letras em 2019. A tradução, deliciosa de acompanhar, é da Débora Landsberg (no Twitter, @deboralandsberg).
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Neste link aqui você encontra a conversa de Paul Mescal com o jornal The Guardian: https://www.theguardian.com/culture/2022/nov/06/masculinity-can-be-expresssed-in-many-ways-paul-mescal-interview-aftersun
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Neste outro aqui, você encontra a entrevista de Sally Rooney para o site Esquire: https://www.esquire.com/entertainment/books/a27194707/sally-rooney-interview-normal-people/
ai gostei demais <3
Não assisti o filme, nem li a série. Mas bonito pacas teu texto. Até tou torcendo pro ator tb