Houve uma ocasião em que eu confessei ter mais coisas em comum com George Costanza do que me seria conveniente admitir. O texto em que eu falo sobre esse assunto se chama “Seinfeld e a piada judaica”, publicado na revista Estado da Arte. Nessa semana, voltei a pensar na sitcom dos anos 90.
Deixe-me começar por dizer toda a verdade: Seinfeld se tornou uma espécie de plano de fundo da minha mente, o que devo ao maior seinfeldiano que já conheci na vida, o senhor meu namorado. Um dos nossos passatempos prediletos é pensar em aspectos das nossas experiências que sejam referências para episódios de Seinfeld. Quer um exemplo? Na sexta-feira passada, nós saímos para jantar. Há muito o que eu poderia comentar sobre esse jantar, acreditem, mas o que foi especialmente marcante foi o modo como a noite teve início. Assim que o garçom nos acomodou em uma das mesas, bem ao centro do restaurante, eu me atentei a cada um dos clientes e lancei a charada, no pé do ouvido do meu namorado: “Há, neste restaurante, uma referência a um episódio de Seinfeld. Encontre-a”. Mantive meus olhos nele enquanto ele, por sua vez, observava as mesas ao nosso redor. Segundos mais tarde, meu namorado voltou o corpo na minha direção e disse: “Já sei. A moça que está só de sutiã.”
Uma das tramas da série mostra a personagem Elaine Benes no esforço de sustentar amizade com uma mulher que a incomoda por nunca usar sutiã. Depois de convidada para a festa dessa amiga, Elaine não tem dúvidas quanto ao presente: ela dá um sutiã à mulher. O interessante é que a personagem presenteada não apenas entende a indireta, como decide agir de maneira contrária ao que o objeto parece lhe sugerir: ela passa a sair na rua vestindo apenas o sutiã com que Elaine a presenteou.
“The Caddy” é o episódio número 12 da sétima temporada.
Na segunda-feira desta semana, eu me vi inserida em um desses tantos contextos que me fazem pensar em Seinfeld. Eu comecei um segundo curso de graduação. Na primeira aula, conforme o esperado, o professor se apresentou para a turma e, em seguida, disse que gostaria que cada um dos alunos expusesse o próprio nome, a idade e o porquê de terem escolhido aquele curso em específico. Notei, não sem me sentir um pouco deslocada, que quase todos os meus colegas estavam na faixa dos dezessete, dezoito ou dezenove anos. A experiência de escuta foi, entretanto, muito interessante — e para muito além do aspecto seinfeldiano da coisa.
As respostas se encaixam, basicamente, em três categorias. A primeira delas eu separo para aqueles que afirmaram “sempre ter gostado do assunto” e que inclusive já tinham planos de carreira detalhadamente elaborados para o futuro. Esse grupo declarou, sem o menor resquício de incerteza na voz, o cargo que cada um deles ocuparia depois de formados. Considerei, de sobrancelhas erguidas, admirável a convicção com que se expressaram. Queria eu estar na mesma posição, pensei, com uma inveja de que me envergonho. No entanto, não pude deixar de cogitar que talvez a segurança não passe, em muitas das vezes, de um traço característico da juventude, como também que alguns deles possivelmente sequer entendem em que, de modo específico, aquelas profissões implicam. Faço questão de esclarecer: meu apontamento não é uma crítica aos colegas. Eu mesma, aos dezessete, me sentia tranquila diante do planejamento de vida que havia estruturado para mim mesma. Aos dezessete, era eu quem dizia o nome da minha futura profissão, com uma satisfação que, hoje eu entendo, pendia muito mais à idealização que ao realismo.
A segunda categoria me surpreendeu por ser — e eu juro que não recorro a esse adjetivo apenas para fins narrativos — o completo oposto da primeira. Os integrantes desse grupo diziam que aquele curso “nunca havia sido a primeira opção” deles, e alguns acrescentavam que não era nem mesmo a segunda opção. Uma dessas pessoas disse que não fazia ideia do que desejava estudar e que, em consequência disso, os pais a fizeram passar por um teste vocacional. Ela confessou, então, que enquanto o teste acontecia, só pensava “por favor, que o resultado não seja este curso”. E então, numa espécie de lei da atração reversa, a resposta do teste foi exatamente a que ela temia. Por isso… Tcharam! Lá estava ela. Depois do desabafo, um suspiro longo e olhos baixos em direção à carteira. Seus colegas, eu inclusa, ficaram todos um tanto quanto constrangidos, exibindo diferentes variações de um mesmo sorriso amarelo incapaz de consolar a quem quer que fosse. Um outro alguém, tomando coragem, disse: “Minha mãe me mandou escolher entre Medicina e este curso aqui. Como eu não posso nem ver sangue, estou aqui.” Eu tentava identificar, no semblante do professor, se ele havia se arrependido da dinâmica proposta. Por outro lado, ponderei mais tarde, pode ser que ele estivesse se divertindo tanto quanto eu.
A terceira categoria talvez seja aquela em que eu mesma me encontro. Pessoas que diziam ter um interesse pelo assunto, que acreditavam na abrangência daquela área de trabalho e que talvez elas encontrassem algo com que pudessem contribuir. Pessoas que, expressando-se de maneira mais livre, diziam estar ali porque queriam “ver onde ia dar” e que “se não desse certo, quem sabe? Tentariam alguma outra coisa”. Exceto pelo sentimento típico dos dezessete anos de supor (e corretamente) que se está diante de toda a disponibilidade de tempo do mundo, eu acredito estar mais próxima de falas como a deles do que dos discursos das duas primeiras equipes. Nada parece me permitir afirmar o que, exatamente, será de minha vida profissional, como se eu ainda estivesse sob o domínio da bola de cristal que, aos dezessete, eu acreditava ter. Também não estou ali em obediência às regras de outro alguém para a minha vida, como se me pusessem uma arma contra a fronte. Estou ali como quem talvez tenha algo a perder, mas como alguém que também vislumbra a possibilidade de ter alguma coisa a ganhar.
Já estava quase me esquecendo. Onde é que entra Seinfeld nisso? Há um episódio em que George Costanza — o meu personagem favorito, sem sequer precisar pensar duas vezes —, num rompante de honestidade, diz ao seu chefe tudo o que realmente pensa sobre o seu emprego e, em seguida, pede demissão. Depois disso, desempregado, George se propõe a pensar quais são suas possibilidades de trabalho naquele momento. Seu raciocínio opera de modo muito semelhante ao que é comum ao nosso eu de dezessete anos: o que eu gosto de fazer? Em que eu sou bom?
Em primeiro lugar, George destaca sua preferência por esportes: “Eu gosto de esportes. Eu podia fazer algo que tivesse a ver com esportes.” Jerry Seinfeld, seu amigo, pergunta, numa tentativa de aprofundar o assunto: “Em que especificidade?”. George expressa, então, a ideia de ser o dirigente de um time de beisebol. Diante da descrença de Jerry, ele conserta: “Não preciso ser o dirigente. Eu posso ser um locutor, sabe? Eu sempre faço comentários interessantes durante o jogo.” Jerry continua a responder de modo a fazer com que George reconheça a dificuldade das áreas em que se imagina atuando, o que o força a continuar levantando alternativas: “Filmes. Eu gosto de filmes. As pessoas são pagas para assistir a filmes?”. Depois de ir ao cinema ver Aftersun pela terceira vez ontem, não consigo deixar de sorrir diante do questionamento de George e de remoer: Ah, meu caro George, se nos pagassem por isso…
“The Revenge” é o episódio número 7 da segunda temporada.
Jerry parece se tornar cada vez mais descrente a respeito das sugestões que George lança ao próprio futuro. Finalmente, ele chega a supor que poderia ser um bom apresentador de TV, uma vez que “conversa com pessoas o tempo todo” e que algumas delas já haviam dito a ele que o projetavam como um bom apresentador. “Ok,” Jerry suspira, “esportes, filmes, apresentador de TV. O que mais?”. George faz silêncio, aquiesce com a cabeça, e finalmente diz: “A minha demissão pode ter sido um erro enorme.”
O que a conclusão de George expressa, ao meu ver, é que estamos sempre à frente de uma aposta. Embora estejamos convictos, provisoriamente, do que queremos, em que pese nos sintamos inseguros demais, ou até mesmo quando nos esforçamos para manter os pés no chão: nossas escolhas sempre poderão resultar em um grande erro.
Ou então no maior acerto de nossas vidas.
Eu poderia ter encerrado o texto com a frase ali de cima, não é mesmo? Mas
arriscar probabilidades de acertos não é o meu forte. Deixando de lado todo o romantismo, eu diria que as chances de que todos meus colegas de classe, você que me está lendo, meu namorado, minhas amigas, os amigos do meu namorado, todos nós, erremos, e erremos feio, são bem mais altas.
E então, nos restará perguntar:
“The frogger” é o episódio número 18 da nona temporada.
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A nível de curiosidade:
Seinfeld é a melhor série de comédia já feita — não deixem que The Office me escute — e você pode assisti-la na NETFLIX.
O meu texto anterior sobre Seinfeld, cujo título eu referenciei lá no primeiro parágrafo, pode ser lido aqui: https://estadodaarte.estadao.com.br/seinfeld-morrissey-vaum-ayine-romero/
Mas Ana, afinal de contas, qual o segundo curso que cê foi fazer?
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Em março, eu começo Letras. Já tô ensaiando como responder essas perguntas.
beijo.
Melhor série da vida. Me vi tanto em seu texto.