Eu ganhei um presente de Natal. Meu pai me deu uma moto XL do ano de 1983. Na verdade, o presente tinha dois destinatários: meu namorado e eu. Eu fui uma espécie de intermediária, uma vez que não tenho a habilidade e nem a permissão governamental para pilotar motos — ao menos ainda. A moto passará a ser posse do meu namorado, que prometeu restaurá-la e deixá-la nos moldes em que estava quando meu pai a comprou. A história se tornou interessante no momento em que meu pai, antes mesmo de nos mostrar a moto, fez questão de nos contar como a XL havia se tornado dele. Ele passeava pela cidade em que cresceu, na companhia da irmã e do cunhado, quando viu a moto nas mãos de seu primeiro dono, um homem até então desconhecido para ele. Depois de abordá-lo, meu pai descobriu que o homem não tinha nenhuma intenção de vender a moto — um estado de ânimo que foi se transformando conforme meu pai, bastante insistentemente, o convencia de seu desejo de comprá-la.
Seu relato despertou o nosso entusiasmo, que se tornou especialmente vivaz quando ele nos colocou a par de algumas das aventuras em que a XL já o havia acompanhado. Apenas com 27 anos, ali, em pé, atenta ao que ele nos dizia, eu descobri que meu pai gostava de rallys de moto. O monólogo dele era repleto de imagens que pareciam diverti-lo ao serem evocadas, além de arrancarem um sorriso também de quem só as ouvia, meu namorado e eu. Meu pai e seus amigos adoravam participar de rallys de moto aos finais de semana, e também de rallys de JEEP. Eles ansiavam pela ocasião em que desbravariam as trilhas, e eram levados por uma empolgação específica quando antecipavam o momento em que ficariam completamente enlameados.
Meu sorriso se alargava conforme as palavras do meu pai se desenhavam à minha frente. Eu estava vendo, diante de mim, uma parte dele com a qual, até então, eu não havia tido contato. Diante de mim, havia agora uma representação inédita: meu pai, imundo, acelerando a moto, observando a lama que em breve lhe atingiria o corpo, trocando olhares cúmplices com seus amigos e, sobretudo, rindo, rindo com frequência, rindo com intenção. Quando sua fala se encerrou, enfrentei certa dificuldade para voltar ao momento presente, para dissipar as imagens das trilhas e afastar o som das motos em movimento. Eu estava presa naquele contexto, sentia vontade de me prolongar nele, de quem sabe permanecer ali por horas inteiras, a fim de me aproximar daquele que era meu pai antes mesmo de que ele fosse meu pai.
Aqui eu pareço enfim tatear o início de uma inferência importante: aquele que era meu pai antes mesmo de ser meu pai. Estava ali, sempre disponível para mim, uma história sobre meu pai que eu desconhecia, e que no entanto, se conhecida, talvez o trouxesse para mais perto de mim. Então ele também sabia se soltar, conhecia a sensação de relaxamento, experimentava viver certos episódios da vida sem grandes preocupações ou mediante um semblante sério, pelo qual ninguém conseguia passar ileso — uma faceta dele que era, quase que em sua totalidade, a com que mais vezes eu me vi interagir. Durante muito tempo, em especial no início da minha adolescência, eu só era capaz de associar meu pai a uma figura que impunha a obediência e que ditava condutas de comportamento que, ele nos garantia, era o melhor para nós, seus filhos, embora nós mesmos, a quem as regras se direcionavam, nem sempre conseguíamos apreender a necessidade daquilo que ele dizia. As memórias que eu tinha do meu pai se alargaram à medida que eu descobri um pouco de seu lado lúdico, conforme eu fui adentrando a imagem de uma situação que havia feito dele um homem genuinamente feliz.
Talvez por isso o filme Aftersun, primeiro longa-metragem da cineasta Charlotte Wells, tenha me comovido tanto. Sophie, uma das protagonistas do filme, está refletindo a respeito de vinte anos atrás, época da infância em que tirou férias na companhia de seu pai. O que Sophie via, nessa fase da vida, era um homem algo misterioso, de leituras e hábitos por vezes excêntricos a uma criança. O tema que percorre o filme é, essencialmente, o da inescrutabilidade de nossos pais. O que sabemos deles? O que nos é dado a conhecer de suas vidas, de seus pensamentos e de suas emoções? Calum, pai de Sophie, embora mantivesse uma superfície de aparente calma e se esforçasse para estar presente da melhor maneira possível nas férias que tira com a filha, deixa implícita ao telespectador a angústia que perpassa cada um de seus atos, falas e silêncios. Não sabemos as razões específicas para essa angústia, sabemos, no entanto, que ela existe, um reconhecimento que Sophie adulta integra às suas lembranças de infância e a partir do qual passa a reinterpretar aquilo de que se lembra a respeito do próprio pai.
Há um momento específico do filme — e talvez você não deva continuar a leitura caso ainda não o tenha assistido e se importe com spoilers — em que Sophie pergunta a Calum o que ele fez no dia do aniversário de 11 anos, idade que ela completa no período das férias em que o filme se passa. Calum responde, num rompante surpreendente de memória: “Quando eu fiz 11 anos, ninguém se lembrava que era meu aniversário. E quando eu disse à minha mãe, ela ficou tão brava que me agarrou pela orelha e fez meu pai me levar até a loja de brinquedos para que eu escolhesse algo para comprar”. Sophie expressa o que também nós, meros observadores da cena, sentimos diante do relato de Calum. Ela diz: “Isso é um pouco… profundo”.
Os recursos cinematográficos empregados na filmagem são magistrais — um aspecto pelo qual Charlotte Wells merece toda apreciação —, uma vez que nós, enquanto ouvimos a resposta de Calum, não ficamos diante do rosto dele. O personagem só pode ser visto pelo reflexo que se dá na tela da TV desligada do quarto de hotel, o que implica em só podermos enxergar uma sombra dele — em outras palavras, não nos é dada a concessão de apreendê-lo por inteiro. Existe ainda, um complemento ideal, o enquadramento para além da tela da TV: vemos metade do rosto de Calum no espelho, embaçado e parcialmente coberto pela lateral preta do aparelho de TV. Ao lado, enquanto a personagem compartilha sua lembrança algo dolorosa da infância, situam-se alguns livros que ele selecionara para as férias: “How to meditate”, de Billur Turan, é o primeiro da pilha; “Being aware of being aware”, de Rupert Spira, o segundo; uma coletânea de poemas de Margaret Tait, “Poems, Stories and Writings” é o terceiro; e, por último, o maior deles, “Tai Chi”, de Paul Leonard — todos títulos que sugerem a batalha mental que Calum travava no período da viagem.
O episódio da infância de Calum me trouxe de volta à mente uma história de meu próprio pai. Esse mesmo homem que é louco por motos, quando criança foi obcecado por bicicletas. Meu pai conta o quanto queria ter uma bicicleta com a qual pudesse visitar os amigos ou simplesmente passear pelas ruas da cidade — barulho de vento nos ouvidos, o frescor da brisa se espalhando pelo rosto. Chegou a pedir ao meu avô, quando pequeno, que lhe presenteasse com uma. Meu avô prontamente lhe negou o pedido, embora meu pai não entendesse o porquê, uma vez que a família gozava de condições financeiras para tanto. Ainda processando a mágoa, meu pai chegou a uma resolução diferente: já que trabalhava desde os 7 anos de idade, por exigência de meu avô, ele mesmo compraria, com o dinheiro de seu salário, uma bicicleta. Seria preciso aguardar alguns meses, uma vez que a quantia mensal que os filhos recebiam não era grande coisa, mas seria também o seu primeiro aceno à independência. Com a esperança renovando os ânimos, meu pai esperou, pacientemente, o tempo necessário para que o montante de dinheiro se completasse. Quando havia reunido a quantia de que carecia, ele anunciou ao meu avô o seu desejo, e também o tranquilizou de que podia pagar pela concretização dele. Meu avô, furioso, arrancou-lhe o dinheiro, bravejando que o salário que os filhos recebiam pelo trabalho deveria se prestar a uma causa mais nobre — a de ajudar nos gastos de toda a família. De mãos vazias, a palma ainda formigando na ausência das notas que, segundo antes, a preenchiam, meu pai entendeu que simplesmente não teria uma bicicleta.
Sempre achei essa história muito triste e, como filha de meu pai que sou, não pude deixar de nutrir certo ressentimento pela personalidade de meu próprio avô, um homem que parecia ter feito de meu pai uma criança a quem a felicidade havia sido deliberadamente censurada. A ocasião do falecimento do meu avô, em 2020, foi a única vez em que vi meu pai chorar. Hoje, me intriga saber se suas lágrimas eram uma manifestação do fato de que ele se lembrava de todo o sofrimento que meu avô havia provocado durante a sua infância, ou se por uma certa compaixão, pelo fato de que talvez ele não tenha feito o esforço necessário para conhecer e entender aquele homem que foi o seu o próprio pai. Do velório de meu avô, lembro-me ainda, como se pudesse materializar o acontecido agora, diante dos meus olhos, de um tio que chorava como se tomado por desespero, mais que qualquer outro filho de meu avô. Secando as lágrimas com um lenço que estava em seu bolso, virou-se para mim, que só por acaso estava ao seu lado, e disse: “Se eu não tivesse feito muitos anos de terapia, e se ainda não fizesse terapia atualmente, eu provavelmente não conseguiria estar aqui, no enterro de meu próprio pai”. Por intermédio da psicologia, eu ousei interpretar, meu tio havia conseguido atribuir uma outra dimensão ao meu avô, uma a que nós, quando crianças, quando filhos pequenos de nossos pais, não temos acesso.
É também disso o que Aftersun fala: nossos pais são tão gente quanto nós. Eles têm facetas divertidas, despreocupadas, infantis até, como eu vim a descobrir na ocasião em que ganhei uma moto como presente de Natal. Mas, também como seus filhos, eles são formados por medos, nutrem angústias, deixam-se, por vezes, vencer por elas, e noutras lutam para não padecer diante da ameaça de que elas os levem a nocaute. Ao descobrir a humanidade de nossos pais, podemos tanto rir na companhia deles, quanto com eles chorar seus traumas e desilusões. Nesse ponto, creio conseguir conectar a XL de meu pai e o filme de Charlotte Wells. A moto talvez você veja depois de restaurada, caso eu compartilhe um antes-e-depois dela nas redes sociais. O filme, no entanto, o filme!, você deve vê-lo imediatamente, ainda que esta seja a única recomendação minha que você decida seguir em toda a sua vida.
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A nível de curiosidade:
Aftersun, dirigido por Charlotte Wells, e estrelado pelo brilhante Paul Mescal e pela incrível Frankie Corio, está disponível na plataforma MUBI.
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No site Digital Mafia Talkies há um artigo intitulado “Aftersun” Ending, Explained: Did Sophie Get To Meet Her Father?, do qual eu destaco um trecho em específico, no qual se lê, tradução livre: “A pressão de ser um pai, de não saber qual é o próximo passo, de não ser uma decepção, é tão grande que suas vidas [a de nossos pais] enquanto indivíduos se perde por completo. Só depois de crescer se entende o outro lado da história. Sophie compreendeu quão destruído seu pai estava, embora ele fingisse que sua vida estava em ordem”. O artigo completo pode ser lido, em inglês, aqui: https://dmtalkies.com/aftersun-ending-explained-2022-drama-film-charlotte-wells-paul-mescal/
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Aftersun é tudo o que é também por conta do elenco formidável com o qual contou. A atuação de Paul Mescal merece todo prêmio que cogitarem lhe atribuir, uma vez que representou de modo impecável a dualidade do personagem Calum. Em vídeo, o ator comenta que Calum é o tipo de homem que ele se interessa em interpretar. “Há muito do que ele faz na superfície”, Mescal pontua, “que se apresenta de modo oposto ao que ele é no privado. Eu acho que esse é um exercício divertido no qual se envolver enquanto ator.”
O vídeo em que ele faz essa afirmação é este aqui:
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Não foi apenas a personagem Sophie quem não conheceu Calum em sua integridade. Nesse mesmo vídeo, a diretora Charlotte Wells, o ator Paul Mescal e a atriz Frankie Corio comentam a respeito de como as cenas em que Calum protagonizava sozinho, e nas quais se expunha uma parcela de seu sofrimento, não eram assistidas pela atriz Frankie Corio, a fim de que essa exposição não atrapalhasse à sua atuação enquanto uma criança inocente e feliz.
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Juro que termino aqui: neste último vídeo, o ator Paul Mescal comenta o casting de Aftersun. Para ele, o processo foi bastante interessante, e também um reflexo de como Charlotte Wells dirige com uma sensibilidade ímpar. A cena responsável por decidir que seria Paul Mescal o ator a interpretar o personagem Calum não incluía diálogo nenhum. Foi a cena da sacada (se você já tiver assistido, saberá qual é, e se ainda não, mal perde por esperar). Paul Mescal deveria fumar um cigarro pelo tempo de duração de uma música da banda Blur. O ator deveria representar única e exclusivamente aquela cena. A música, de três minutos e meio, pareceu longa para Paul Mescal, além de muito intensa. Se você é tão curioso quanto eu, era a Song 2, e o Paul Mescal comunica a decisão de interpretá-la de modo contido, sutil, exatamente como nós vemos (e que nos hipnotiza) no filme.
Assista ao vídeo aqui: https://www.instagram.com/reel/CmM8gQHAi7-/
que texto lindo <3 fiquei emocionada e, confesso, com um pouco de inveja. descobrir novas partes do meu pai é algo que não posso fazer. ele morreu quando eu tinha 18 anos, uma idade em que a gente nem imagina que nossos pais são realmente pessoas como a gente. então, juntou Aftersun com esse seu relato da moto... nossa, muito potente!
Oi Ana, que bonita sua reflexão! Cheguei aqui pela indicação da Bárbara Bom Ângelo e adorei o texto. Também me interesso muito pelo universo da parentalidade, mas desse ponto de vista das pessoas que existiram antes, e como elas podem constituir a família que passa a existir depois dos filhes nascerem. Eu escrevi algo sobre isso nessa edição da minha newsletter, espero que você goste: https://tremdasonze.substack.com/p/comece-pelo-corpo :)