Há pelo menos uma semana, eu publiquei aqui um texto sobre a relação bonita que existe entre o Matheus, meu marido, e o Lobo, nosso cachorro. Em resumo, o texto se aproveitava de uma fala do psicanalista Massimo Recalcati sobre alguns dos sinais do amor. O que ele dizia, outra vez, de maneira sucinta, é que, quando somos amados, a nossa vida é escolhida, eleita, é, enfim, esperada pelo outro.
Fato é que eu nunca escuto as falas do Massimo Recalcati uma vez só. Sendo assim, dias atrás, eu me peguei ouvindo, pela segunda vez, o mesmo episódio de podcast a que já me referi na newsletter anterior: “Incompatibilità tra amore e desiderio” [Incompatibilidade entre amor e desejo], no qual o Recalcati explicita essa ideia de que o amor exige, enquanto signo de si, a presença do outro — a presença pela qual ansiamos, a presença da qual sofremos ao nos afastar.
Em determinado momento do episódio, Recalcati, então, guia-nos através de uma imagem que visa ilustrar a importância dada, pelo amor, à presença do outro. O psicanalista pede que imaginemos uma cena: “Immaginiamo due amanti che si trovano dopo un lungo tempo di separazione”. Comecemos, então, por imaginar um casal que se encontra depois de um longo período separados. “E immaginiamo che uno dei due discenda da un treno e immaginiamo i due che si abbracciano”. Em seguida, imaginemos que um deles desça de um trem e que, em seguida, os dois se abraçam. “E immaginiamo qual è la prima domanda che uno rivolge all’altro: ci sono mancato? Cioè, sono stato presente in te, dentro di te, nel tempo della mia assenza? La mia mancanza ha fatto segno per te? Sono stato cioè che ti è mancato in questo tempo?”. Por fim, imaginemos a primeira pergunta que um direciona ao outro: ‘você sentiu minha falta?’ Ou seja, eu estive presente para você, dentro de você, no período da minha ausência? Minha ausência te deixou marcas? Durante esse período, fui eu o que te faltou?
Para Massimo Recalcati, todas as perguntas se tornam uma só: “Tu puoi perdermi?”, isto é, “você pode me perder?”, no sentido de, estaria tudo bem para você, caso me perdesse? Faria, a você, alguma diferença? Em relação a essa pergunta, Massimo Recalcati então pondera: “‘Tu puoi perdermi?’” è il gioco che struttura, per esempio, il nascondino, così detto, dei bambini. I bambini amano molto fare questo gioco di nascondersi, sottrarsi alla vista, perché testano, in questo modo, il desiderio dell’altro. Tu puoi perdermi”. A interrogação que exige saber se o outro pode me perder é o jogo que estrutura, por exemplo, o esconde-esconde das crianças. As crianças adoram esse jogo de se esconder, de se retirar para fora do campo de visão alheio, porque assim elas testam o desejo do outro. O outro pode me perder.
Nesse ponto, o psicanalista compartilha uma história pessoal bastante bonita: “Ricordo mia figlia, molto piccola, che ogni volta che io rientravo a casa, dopo una lunga giornata di lavoro, non si faceva trovare, spariva, e mi costringeva a cercarla nella casa, chiedendomi dov'è Camilla. E a certo punto, quando Camilla constatava la mia disperazione nel non trovarla, appariva. Aveva verificato che io non potevo perderla, che la sua presenza nella mia vita era una presenza fondamentale, di cui io poteva avvertire la mancanza”. Recalcati se lembra da própria filha que, quando criança, sempre que ele voltava para casa, depois de um longo dia de trabalho, não se deixava encontrar, desaparecia, e o forçava a procurá-la pelos cômodos, perguntando-se ‘onde está a Camilla?’. Em determinado momento, quando Camilla constava o desespero do pai que não a encontrava, ela aparecia. A essa altura, ela já havia verificado que o pai não podia perdê-la, que a sua presença, na vida do pai, era fundamental, e que sua ausência era sentida por ele.
Recalcati então conclui que “la misura in cui percepiva che io poteva avvertire la sua mancanza, riappariva. Questa è la dialettica e la dinamica dell’amore, che implica, dunque, la presenza del segno della mancanza dell’altro, che implica, dunque, l’insostituibilità e che implica, dunque, il fatto che la nostra vita, quando è amata, non è più per caso”. À medida em que a filha, Camilla, percebia que o pai sentia sua falta, ela reaparecia. Essa é, de acordo com ele, a dialética e a dinâmica do amor, que implicam, então, na presença do sinal da falta do outro, que implicam, por sua vez, na insubstituibilidade do outro e que implicam, por fim, no fato de que a nossa vida, quando é amada, já não é por acaso.
Não é lindo isso? Não é, no entanto, apenas pela beleza das ideias do Recalcati que eu tive o ímpeto de compartilhá-las, mas sim porque, um pouco depois, já cansada de ouvir o podcast, me decidi por ouvir música. Tendo voltado há pouco da Itália (não tão pouco assim, vai, mas ainda, de certa forma, há pouco), minhas playlists, ultimamente, estão cheias de cantores italianos.
Nos meus fones de ouvido, de repente tem início a canção “Ho capito che ti amo” [Eu entendi que te amo], de Luigi Tenco. Vejam só o que ele canta, logo nos primeiros versos: “Ho capito che ti amo / quando ho visto que bastava un tuo ritardo / per sentir svanire in me l’indifferenza / per temere che tu non venissi più”. Eu entendi que te amo, ele diz, quando vi que bastava um atraso seu para que eu sentisse desaparecer de mim a indiferença, para que eu temesse que você já não viesse mais.
Não é esse o conceito trabalhado pelo Massimo Recalcati? A vida do outro já não é por acaso, posto que em relação a ela não sentimos nenhuma indiferença. Nós a elegemos, a escolhemos, a esperamos… e, se ocorre um atraso, em decorrência do qual somos privados da presença do outro, tememos que ele já não volte. Tememos, sim, porque — e aí nos recordamos do jogo infantil que questiona “tu puoi perdermi?” — não podemos perdê-lo.
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Novamente, o link para o podcast em que o psicanalista Massimo Recalcati fala essas coisas todas:
E a música do Luigi Tenco, que é linda:
Por fim, lanço uma pergunta a vocês que me leem: vocês gostam mais quando eu insiro o texto original, em língua estrangeira, no meio do texto em português, e vou traduzindo logo em seguida? Ou preferem que os trechos originais sejam uma espécie de nota de rodapé? Não há respostas erradas.
Ciao!
uau! queria saber italiano pra ouvir esse podcast. que belo resumo sobre amor, desejo e a falta.
gostei mto tb do formato com o original intercalado com a tradução. oportunidade de descobrir palavra de outro idioma, novo pra mim.
Que eu gosto muito de te ler não é novidade, Aninha, mas acho que nunca disse o quanto admiro o seu olhar sensível, a sua habilidade em observar e tirar reflexões muito pertinentes sobre tudo. <3
Sobre a pergunta que fez no final do texto: não vejo problema em trazer a língua original no meio do texto, acho interessante inclusive, mas se ela estivesse em itálico (ou algo do tipo), talvez me levasse um pouquinho mais rápido para a ótima tradução que você faz. Digo sobre essa rapidez única e exclusivamente por dois motivos: 1) não sei nadica de italiano, infelizmente e 2) para eu não perder o fio, sabe?
Mas, claro, traga como preferir, o mais importante mesmo é poder te ler. <3 Um beijo carinho em você e no Lobo.